Em uma entrevista de 1989, Ariano Suassuna mostrou-se um showman, transformando uma conversa informal em uma inesquecível lição de vida e arte.
No mais recente 16 de junho, Ariano Suassuna completaria 97 anos de idade. Infelizmente, em razão de leis biológicas, ele não se tornou imorrível, como gostava de falar, e faleceu em 2014. Mas ele é imortal de fato por obra e graça do seu gênio e espírito. Recupero a seguir o texto que lhe dediquei em páginas do “Dicionário Amoroso do Recife”.
Esta entrevista se frustrou em 1989. Anotei-a um ano depois, em 1990.
Conversando, Ariano Suassuna nada tem de Ariano. Conversando, Ariano é um brasileiro mestiço. Conversando, a sua referência passa ao largo das antiquíssimas gentes do tempo dos vários Afonsos e de Dom Sebastião. Conversando, a referência de Ariano é coisa mais recente, tão recente que talvez seja moderna, e de um recente tão plebeu, que talvez seja inconveniente lembrar tal referência a um acadêmico: tudo o que Chico Anysio, Lima Duarte e Rolando Boldrin tentam fazer na televisão, conversando, há muito Ariano vem fazendo: ele é um humorista narrador de casos ajeitados à feição de vivíssimos causos. Ele é um showman sem smoking, metido em roupa de caroá, ou em calça e camisa de brim cáqui.
Um dia chegamos para entrevistá-lo, ao fim do horário de suas aulas na universidade. Isso foi há mais de quinze anos. Ele foi logo dizendo que tinha desistido da entrevista, acertada antes. Sentamo-nos então em um banco de pedra, no pátio da Escola de Artes.
— Não, não adianta. Eu não sou mais menino. Falo com pureza d’alma. Falo com o coração na mão: essa entrevista não pode mais sair.
E como a entrevista não mais podia sair, sem gravador, Ariano deu início a uma conversa de quase duas horas. Cruzando as pernas no brim cáqui.
— Gorbachev é um negócio interessante. Eu sempre sonhei com o dia em que o cristianismo entrasse na União Soviética. Aí, chega uma repórter agora e me pergunta sobre a abertura na União Soviética. Ela pensava que eu era favorável. É que as pessoas pensam que como a gente está ficando velho, pensam que além de velho eu estou ficando reacionário. Eu respondi: “minha filha, eu queria um novo socialismo, não era a volta do capitalismo não”. Esse Gorbachev está fazendo o tempo voltar para trás. Não é?
— É um negócio danado. Antes de 64 eu tinha uns pegas com os comunistas aqui na universidade. Mas era um pega cultural, de idéias. Eles pegando a estética pela economia, e eu pegando a estética sem muita economia. Era mais ou menos isso. Então vem o golpe militar. Mas eu tinha amigos comunistas, um até bom ator, trabalhou numa peça minha, eu tinha a maior afeição. Então a minha casa virou abrigo para alguns desses amigos. A polícia não iria nunca procurar esses perigosos vermelhos em minha casa, não é? Aí vejam que coisa interessante acontece. Eu já estava com um comunista escondido lá em casa, quando me aparece mais um, querendo se esconder. Então ficou o primeiro vermelho, por trás do segundo, a fazer sinal para que eu não aceitasse mais um comunista em minha casa…
— Pois foi esse mesmo, o primeiro, que me deu uma lição, temerária, sobre os riscos e forma de viver. Houve um dia em que prenderam a mulher dele. Danou-se, eu me disse. Eu fiquei meio preocupado. Eu fiquei acabrunhado. Aí ele chegou pra mim: “Está com medo, Ariano?”. Vejam só a minha situação. Eu na minha casa, e sem poder ficar com medo. Ele me pegou nos brios. Aí eu me lembrei do que minha gente dizia, lá na Paraíba. E respondi: “Meu amigo, eu não conheço ninguém muciço” (macizo). Não é? Pois ele nem com essa resposta se abalou. Virou-se pra mim e disse: “Pois para mim, a morte é apenas um pequeníssimo incidente na roda da história”. Eu fiquei assim… Danou-se. O que pra mim era a coisa mais importante, a minha própria morte, na roda histórica era nada. Não é danado?
Aí, a essa altura, a gente não sabe se Ariano Suassuna criou o seu personagem, ele próprio, Ariano, ou se o seu personagem criou o narrador de auditório, Ariano. Conversando, ou melhor, somente ele falando, parece que conversa, porque ele narra de um modo que nos mergulha no meio da sua narração. Ele gera a ilusão da conversa pela comunhão, até mesmo pela cumplicidade, com os fatos narrados.
Ariano, “conversando”, é ator de picadeiro sem trejeitos ou caretas, que substitui pelos movimentos da voz, pelas inflexões na fala, pela escolha de palavras chãs, pelo rasgo de olhos pícaros que nos fitam, acompanhando o efeito das armadilhas que lança. Ele narra nesse ator — ele próprio — pela ambientação que situa; uma ambientação absolutamente econômica de cenários; cenários só personagens, e, o que reforça a ilusão de conversa, ele aparenta ser também ouvinte, quando na verdade faz pausas de radar, para ver como se refletiram aqueles sinais que lançou.
— Eu tenho muita simpatia pelo mentiroso…
Refletimos um sinal, porque comentamos rápido: “García Márquez disse uma vez que todo escritor é um grande mentiroso”. O radar pega o reflexo de volta, ainda mais rápido:
—… É? Eu não conhecia isso. É interessante… Pois eu tenho a maior simpatia pelo mentiroso. Eu tenho pelo seguinte: o homem que é mentiroso por vocação é um inconformado. Ele é um inconformado com o que o cotidiano não deixa acontecer. Eu acho que ele dá vazão a uma verdade que às vezes é só dele, que muita gente não viu. Eu acho que foi isso o que García Márquez quis dizer, não foi?
A plateia consente. A “conversa” se estabelece.
— Em Taperoá tinha um mentiroso que era meio violento. Ele viu uma vez um sujeito morrer com uma facada. Olhe, um mentiroso ver um sujeito morrer, e de facada, já é dose demais pra sua imaginação. Ele viu e depois começou a contar do jeito dele, na feira da cidade, e começou a juntar gente. E ele solto no meio do povo. O defunto já havia morrido duas vezes, levado oito, nove facadas, já havia derramado sangue por três homens, e o povo atento, pra ver aonde ia parar o rio de sangue. A cada pergunta ele respondia com mais uma coisa, um detalhe, cada pergunta era uma deixa para o mentiroso variar. Mas pra desgraça dele apareceu uma testemunha do crime. Aí a testemunha interrompeu o contador da história e lhe disse: “Olhe, não foi bem assim não. O homem morreu foi com uma facada, de uma só vez”. Aí o contador da história se voltou. Vejam só que lição, que negócio interessante. O contador virou-se com raiva e disse: “Você tinha nada que me desmentir? Você tinha nada que estragar a minha história no meio do povo? Me digam uma coisa”, aí ele já falou para as pessoas em volta, “me digam uma coisa: do jeito que estava a minha mentira, do jeito que eu contava, não era mais bonito que essa verdade de uma facada só?”. E o povo concordou com o mentiroso. Não é? A mentira dele tinha mais beleza.
Não é? Essa verdade, digamos, essa reflexão moral, expressa num ato de gente de cara e dente, é função do artista, de artista. É do ofício. Em lugar de uma dissertação, uma ação. Em lugar de uma discussão filosófica, um movimento de gente. Gente com ideias, com conceitos, ainda que analfabeta, pasmem os equívocos. E mostrar gente sem instrução formal, expressando à sua maneira idéias civilizadas, é escolha de um só fio. Daí, duas ou três coisas: 1. Em Ariano mesmo conversando, existe essa contradição do complexo, o pensamento mais elaborado, e da formulação desse complexo em língua que se ouve na cozinha da nossa casa. Seria, para ele mesmo, motivo e nome para mais uma peça do gênero farsa, algo como “o raso falso”, ou “o raso e o profundo”. 2. Daí que Ariano tenha se dado mal em liderar, gerar movimentos com ideias, alucinações, que estavam transformadas, bem situadas no teatro de Ariano Suassuna. Um criador não cria um movimento coletivo, mas um movimento faz avultar e cria seus criadores. 3. Na eleição dos personagens da terra nordestina, nessa escolha só fia quem chegou a este ponto por uma cultura que não é só da terra.
— A minha revelação como autor de teatro foi García Lorca. Quando eu li García Lorca pela primeira vez, eu descobri o meu caminho como autor. Me deu um baque. Não é que eu fosse fazer o que Lorca fez — disso eu já sabia. Mas o teatro de Lorca, aquele universo, tinha coisas que eu sentia como uma coisa que eu conhecia — vejam vocês, um autor espanhol, com um acento trágico, revelando o meu caminho de autor do Nordeste do Brasil. Havia coisas parecidas comigo. Então eu me disse, “é isso!”. Depois vieram outros autores, outras influências, não é? E a roda da história girando.
— Quem me deu Lorca para ler foi Hermilo Borba Filho. Hermilo foi uma espécie de guru, para mim e para a minha geração. O Teatro do Estudante, os meus primeiros trabalhos, têm muito a ver com essa relação muito rica que eu possuía com Hermilo. Eu devo muito a Hermilo.
Fora de tempo e oportunidade, sem acompanhar os sinais do radar, nós lhe perguntamos sobre o Movimento Armorial, sobre a monarquia… Ariano abre os braços, queixa-se de cansaço. A noitinha vem chegando ao campus. Por razões inesperadas, o que para um repórter é aquilo que não faz parte da agenda, não percebemos que a negação da entrevista era uma negação mentirosa. Naquela hora, naquele instante, porém, não notamos que voltávamos para casa com uma dupla frustração. Burros duas vezes: o famoso criador, o mito Ariano Suassuna era muito, muito simples, vale dizer, quase um homem sem importância; a entrevista, que ele nos concedera como uma palestra, sentado em um banco de pedra, sem gravador, era como se não houvesse acontecido. Muitos anos depois, acordamos.
O raso era profundo. Caímos na conversa de Ariano.